16.9.09

Ilusão

Em conversa com um amigo numa esplanada dei por mim a pensar que me sentia exausta. Exausta de procurar constantemente algo, de sentir, de tentar, de acreditar, de desejar. E comecei a questionar-me ate que ponto os nossos sentimentos se podem desgastar. Ate que ponto perdemos um bocadinho de nos com o que as pessoas nos fazem ou nao fazem. As desilusões sao como sulcos na parede que nos ajudam a trepar para um lugar onde a vista e mais bonita ou sao como marcas que vao destruindo uma pintura?

Sinceramente, nao sei. Embora tenha a tendência para achar que e o primeiro caso. Que aprendemos sempre alguma licao importante e que devemos tentar sair disso melhores pessoas e tentar nao cometer os mesmos erros outra vez.

E e disto que me sinto exausta, desta luta que nao acaba.

Eu gosto de ir ao cinema, jantar fora, ir a praia, ir as compras, dar passeios. Gosto de poder falar do livro que li, do programa de tv que vi, do que aconteceu no trabalho. Gosto da ideia de ter um companheiro. Nao me interpretem mal, eu também gosto de estar sozinha e sinto que neste momento nada poderia crescer nesta terra queimada, e sempre preciso tempo para regenerar.

E nestas alturas lembro-me sempre de um dos textos mais bonitos que ja li do Miguel de Sousa Tavares. Este homem e um escritor maravilhoso e ninguém se consegue exprimir melhor do que ele.

"E escrevi o teu nome e o teu número de telefone numa página da agenda do mês de Fevereiro. E, ao escrevê-lo, sabia que era uma despedida, mas todo o mês de Março nos arrastámos na despedida, como caranguejos na maré vazia. Sem ti, lancei outras raízes, construí pátios e terraços, fontes cujo som deveria apagar todos os silêncios, plantei um pomar com cheiro a damasco, mandei fazer um banco de cal à roda de uma árvore para olhar as estrelas do céu, um caminho no meio do olival por onde o luar pousaria à noite, abóbodas de tijolo imaginadas pelo mais sábio dos arquitectos e até teias de aranha suspensas no tecto, como se vigiassem a passagem do tempo. Nada disso tu viste, nada te contei, nada é teu. Sozinhos, eu e a aranha pendurada na sua teia, comtemplámo-nos longamente, como quem se descobre, como quem se recolhe, como quem se esconde. Foi assim que vi desfilar os anos, as paredes escurecendo, um pó de tijolo pousando entre as páginas dos mesmos livros que fui lendo, repetidamente. Heathcliff e Catarina Linton destroçados outra vez pela minúcia do tempo.
Como explicar-te como tudo isto se te tornou alheio, como tudo te pareceria agora estranho, como nada do que foi teu vigia o teu hipotético regresso? Ulisses não voltará a Ítaca e Penélope alguma desfará de noite a teia que te teceste.

E arranquei a página da agenda com o teu nome e o teu número de telefone. Veio a seguir Abril e depois o Verão. Vi nascer a flor da tremocilha e das buganvílias adormecidas, vi rebentar o azul dos jacarandás em Junho, vi noites de lua cheia em que todos os animais nocturnos se chamavam rãs, corujas e grilos, e um espesso calor sobre a devassidão da cidade. E já nada disto, juro, era teu.

E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter.

Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido. Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.

E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo. E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu para sempre."


Não te Deixarei Morrer, David Crockett

3 comentários:

Tuga em Londres disse...

Muito lindo o texto, sem dúvida.

Anónimo disse...

Obrigada pelo texto!

jmnpm disse...

Correndo o risco de repetir o comentário que deixei no post anterior, gosto mesmo muito de ver "Dama do Ocidente" no meu Reader...é sinal que escreveste algo.

Este texto está muito bom e tu és muito fixe.